A indústria como eixo estratégico de desenvolvimento
Rafael Cagni
1 – O Governo Federal, por meio de Ministério da Indústria e do Comércio, o MDIC, lançou uma série de ações que irão compor uma nova proposta de política industrial para o país. Qual a sua avaliação sobre a iniciativa?
O primeiro ponto positivo é que finalmente a gente entrou mais na discussão do como fazer uma estratégia industrial. Ou seja, este movimento nos coloca em uma tendência internacional.
Política industrial todo o país sempre fez, desde sempre, mas, nesses últimos anos, nessa última década, ficou cada vez mais explícito o que os outros países estão fazendo e no que estão apostando cada vez mais.
Então, acho que isso nos coloca em contingência com o que está acontecendo no mundo. A indústria como eixo estratégico de desenvolvimento dos países, compreendido o desenvolvimento do país e como resposta aos desafios contemporâneos, principalmente as mudanças climáticas. Então, esse é o primeiro ponto positivo.
O segundo ponto positivo é que isso é uma convicção dos mais altos níveis do governo brasileiro, da presidência da república, da vice-presidência da república, que ocupa também o cargo de ministro do desenvolvimento industrial. Então, é importante que isso seja muito claro para os níveis superiores de decisão do governo.
2 – Como avalia a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI)?
Este é um aspecto muito importante, o resgate do Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial, que é uma estratégia industrial de sucesso. Isso é muito claro nas experiências internacionais, tanto do passado quanto do presente.
A articulação e a coordenação dessas ações são fundamentais. Não há estratégia de sucesso sem articulação e coordenação. Coordenação entre as diferentes esferas do governo, os diferentes ministérios, entre governo federal, estadual, municipal, determinadas ações, e também uma articulação com o setor privado. Essa articulação com o setor privado empresarial, mas não apenas, com a sociedade civil de uma forma geral, com a academia, com o centro de pesquisa, com a sociedade civil de forma geral, com a classe trabalhadora.
Isso tudo porque nenhuma dessas estratégias industriais de sucesso cabem em um mandato. Elas não cabem em quatro, cinco anos. A gente está falando aqui de um processo de médio prazo que pode levar uma década, uma década e meia. Ninguém sai de uma situação para outra em quatro anos.
3 – Qual a importância deste papel de articulação do governo, equacionado estes interesses diversos, para o sucesso de uma nova política industrial?
Eu acho que essa necessidade de coordenação é importante com outros agentes, vamos dizer, outros atores sociais para além do próprio governo, porque essa ancoragem na sociedade, no setor privado empresarial, na academia, no centro de pesquisa, na classe trabalhadora é que vai transformar uma política de governo em uma política de Estado.
Com isso, evidentemente, eu não quero dizer que não possa haver ajustes, mudanças de prioridade, mudanças de governo, mas o “core” da estratégia se mantém.
Se mantém por quê? Porque os atores envolvidos no setor privado e na sociedade são convencidos de que aquilo é algo importante a ser feito. Então, essa convergência exige muita articulação, muita conversa, muito convencimento, muita demonstração de potenciais impactos positivos. É um trabalho árduo mesmo. E isso tem que ser feito coletivamente.
Desta forma, o CNDI, por exemplo, é um espaço importante no mais alto nível para a gente ter essa articulação. Agora, também vai exigir níveis inferiores dessa articulação, entre as equipes técnicas dos ministérios, de agentes importantes como, por exemplo, o BNDES, APEX, a ABDI, e as instituições representativas da sociedade, CNI, FIE, PIED, e todas as outras organizações, sindicatos, associações de pesquisa, como a Associação Brasileira de Economia Industrial.
Temos que valorizar esta sinergia, a criação de denominadores comuns, de diálogo, de conceitos e de ideias compartilhadas. Sem isso, a gente vai ter algo que é muito presente no Brasil nas últimas décadas, toda vez que a gente tentou fazer estratégia industrial, a descontinuidade.
Você muda de governo, chega uma nova crise, essas coisas são desmobilizadas, descontinuadas. Antes mesmo da medida ter tido tempo para dar efeito, a gente vai lá e descontinua.
4 – Analisando em profundidade a divulgação desta nova política industrial, o que podemos considerar de extrema importância?
De forma geral, as diretrizes apontadas pelas sete missões divulgadas no dia 23 dessa semana, pelo MDIC são super coerentes com aquilo que está acontecendo no mundo e super acertadas. Ou seja, enfatizam a sustentabilidade ambiental, que é uma tendência global, mas que também é um tema onde o Brasil tem muita vantagem em explorar.
Então, isso tudo é muito importante, não só para, vamos dizer, tornar a nossa matriz de energia elétrica 100% verde, mas também avançar muito na nossa matriz energética de forma geral. Isso é importante pela questão em si, de redução de emissão que isso pode causar, mas também porque essas tecnologias envolvidas, elas vão ajudar a descarbonizar outros setores difíceis de serem descarbonizados. Se a gente pensa, por exemplo, em hidrogênio verde, no mundo inteiro é a grande aposta para descarbonizar, por exemplo, indústrias de tecnologia, mineração, indústria química, que são difíceis de serem descarbonizados.
No caso brasileiro, como a gente tem biocombustíveis, que a gente tem um know-how tecnológico e produtivo, pode ajudar a descarbonizar agroindústrias, descarbonizar agricultura, pode criar fontes alternativas de receita, como, por exemplo, a captação de biometano a partir de resíduos sólidos, a partir de esgotos.
Está questão da captação de biometano, por exemplo, permitiria a criação de receita adicional para o saneamento, que é um déficit social que a gente tem. Trata-se de um problema resolvido no século XVIII, no resto do mundo, no mundo desenvolvido. A gente está aqui ainda lidando com isso.
Outro acerto que eu vejo é conferir ao BNDES novamente um papel estratégico no desenvolvimento do país para o banco que estava se comportando como um banco de financiamento, um banco qualquer.
5 – Quais são as frentes fundamentais para se desenvolver uma agenda industrial ampla e de longo prazo?
No contexto atual eu diria que temos que atuar focados em uma frente que chamo de “agenda transversal”, ou seja, é a digitalização, a difusão de tecnologias digitais e tecido industrial.
Precisamos estabelecer, também, uma agenda de produtividade, ou seja, com a digitalização, você difundir técnicas de gestão e tecnologias que não são necessariamente digitais, mas que podem ampliar a produtividade de forma muito precisa.
E uma terceira frente é a sustentabilidade, que envolve avaliar a questão energética todas as atividades econômicas, priorizando insumos biodegradáveis, de produtos verdes, de circularidade. Isso tudo envolve todo e qualquer setor.
E há, ainda, o que a OCDE chama de agenda direcionada, que envolve políticas mais de recorte tecnológico, que envolve políticas por missão, que envolve políticas mais setoriais. É outro pedaço importante, mais de longo prazo, mas fundamental para a indústria. Porque é aquilo que vai criar as condições de competitividade do futuro.
Esta agenda direcionada, inclusive, está muito mais próxima das sete missões que o governo estabeleceu para a estratégia industrial.
6 – Como estruturar ações para cumprirmos estas 7 missões estabelecidas pelo governo?
As missões, as diretrizes, a gente já tem. O que a gente precisa agora são os projetos que vão materializar essas missões. Por exemplo, a questão do hidrogênio verde, que é capaz de descarbonizar a agricultura, ajuda a descarbonizar vários setores industriais. Por exemplo, siderurgia, química, mineração, agroindústria. Ajuda a criar resiliência de cadeia.
O Brasil hoje é um dos maiores produtores agrícolas do mundo e a gente importa 80% de amônia para fazer fertilizante. Ora, o hidrogênio verde, ao longo da cadeia deles, é um subproduto, um produto viável, que inclusive é uma forma de reserva de energia, é amônia verde. Então se a gente conseguir criar amônia verde, a gente pode ter um ganho de competitividade para a produção de fertilizante sustentável e, consequentemente, aumentar a resiliência da cadeia do agronegócio no Brasil.
Outro exemplo é em biocombustível. A gente é um dos maiores produtores de biocombustível no mundo, mas a gente importa metanol, depois de 2016, 100% de metanol, que é um insumo importante para fazer biodiesel. Ora, um dos subprodutos da produção de hidrogênio é você gerar metanol sustentável. Então, você também aumenta, por exemplo, a resiliência da cadeia de produção de biocombustível.
Dentro de metanol, a gente tem várias trajetórias tecnológicas possíveis, que vai da eólica à eletrolítica no Nordeste, que vai de biomassa vinculada ao agronegócio, que poderia estar mais centralizado no país, no Centro-Oeste, no Nordeste, etc. Podemos fazer via rota de resíduo sólido urbano, que também te dá essa viabilidade de você gerar receita adicional para saneamento.
Então, você consegue tratar disso, pelo menos nas três ou quatro missões que o governo se colocou, que é descarbonizar alguns negócios, descarbonizar a indústria, focar na questão da cidade, da mobilidade, porque uma das possibilidades para descarbonizar o transporte é a célula de combustível, a hidrogênio, que está aí em pesquisa em várias universidades do Brasil.
7 – Em sua opinião, quais os principais riscos que podem comprometer o sucesso de uma política industrial?
O principal risco é querer fazer tudo ao mesmo tempo, mas não ter nem condições de gestão, nem ter condições de articulação, nem ter um orçamento suficiente para que nada daquilo que você esteja fazendo tenha massa crítica suficiente para ter impacto.
O outro risco, além de dissipar os esforços, é o dia a dia, as necessidades, tanto políticas como econômicas mesmo, de ter um desempenho econômico superior, já forçando o governo a tomar decisões que são contraproducentes ou não muito coerentes com essas missões, essas estratégias mais amplas.
Então, o Brasil precisa centrar esforço naquilo que foi discutido para ser as principais diretrizes.
8 – Qual o impacto dos problemas estruturais, que há muito fazem parte de nossa agenda, para podermos avançar em uma nova política industrial?
Todo país emergente ou país em desenvolvimento, sempre tem que lidar com problemas antigos, não resolvidos. Tudo isso em paralelo desafio do futuro que vão sendo trazidos pelos centros mais dinâmicos da economia mundial.
Agora, no caso brasileiro, a gente está há muito tempo parado. A gente não tem estratégia de verdade há muito tempo. Isso é um problema.
Ao promover a reindustrialização, promover a neoindustrialização, ou como eu prefiro, promover a revitalização industrial, é uma ação multifatorial em diversos níveis. Então, a gente tem uma agenda que é sistêmica, que é, grosso modo, resolver os problemas do custo Brasil e de competitividade. E o topo da lista do que fazer na agenda sistêmica é reforma tributária. A gente não pode terminar esse governo sem uma reforma tributária profunda, que implemente um IVA, que, no fundo, é a norma internacional para tributação de bens e serviços, com todas aquelas características que a gente já está há anos discutindo.
As compensações de crédito e débito ao longo da cadeia, não-cumulatividade, tudo isso que a gente já está, assim, do ponto de vista técnico, não há mais desafios. A gente tem um desafio político. Então, a bola realmente está na mão do governo.
Em segundo lugar, temos que resolver nossos gargalos em infraestrutura. A infraestrutura não apenas ajuda a indústria a crescer, mas a infraestrutura também aumenta muito a competitividade.
Os cálculos da BID mostram que o que a gente investe em infraestrutura não cobre nem a depreciação da infraestrutura existente. Então, não é à toa que a gente vê ponte caindo, buraco aqui e ali, embarrancamentos em determinadas áreas. E isso só vai piorar, porque dentro dos cenários de mudanças climáticas, muito da nossa infraestrutura, principalmente de transporte, estará sujeita a eventos climáticos extremos. Chuva muito forte pode causar deslizamento, inundações, etc.
Necessitamos urgentemente fechar o gargalo de infraestrutura e tornar a infraestrutura nova resiliente a essa transformação climática. Por exemplo, não dá para continuar fazendo asfalto parecendo uma casca de ovo no Brasil. Porque isso não vai suportar a intensidade projetada para o regime de chuva num processo de transição climática. Isso não é um problema para daqui a dois ou três anos, mas é um problema para a próxima década. Então, tudo isso pode causar muita perda de competitividade.