Mês das Mulheres – Carmosinda Santos, uma história de superação

CARMOSINDA SANTOS

A história de Carmosinda Santos é tão improvável, quanto fantástica. Conhecida como a “Rainha da Refrigeração”, a engenheira mecânica e técnica em refrigeração e climatização é uma das primeiras mulheres da América Latina a atuar com chillers e climatizadores de precisão.

Tamanha raridade fez com que um mito fosse criado sobre sua existência quando a mesma começou a fazer vídeos despretensiosamente mostrando o dia a dia de seu trabalho e trazendo dicas de sua experiência profissional para contribuir com outros técnicos e técnicas do ramo.

Os vídeos viralizaram e logo Carmosinda virou referência no assunto, além de ser um alicerce para mulheres que estavam começando ou já atuavam no ramo de “água gelada”, como a própria diz.

E com a energia delas que Carmosinda formou sua base de ação e resistência num universo tido como “trabalho para homem”. Com os vídeos vieram o canal “Elas no AVAC-R”, as redes sociais e os grupos de colaboração, onde cada vez mais mulheres trocam informações, se apoiam e crescem juntas mostrando que a capacidade independe do sexo.

Tamanho impacto rendeu a Carmosinda uma participação no livro da ONU, Women in te Refrigeration and Air-conditioning Industry: Personal Experiences and Achivementes (As mulheres na indústria de refrigeração e ar-condicionado: experiências e realizações pessoais, tradução livre em português).

Há dois anos, o “Mulheres no AVAC-R” criou um prêmio para técnicas industriais em geral, valorizando ainda mais a atuação destas profissionais e destacando mulheres que tem feito a diferença no Brasil com sua competência.

Carmosinda, ainda, foi convidada para integrar o Conselho Regional de Técnicos Industriais do Estado de São Paulo – CRT-SP, tamanha sua influência e destaque na área de refrigeração.

Nesta entrevista, contamos mais de sua trajetória e porque a escolhemos como representante de destaque neste mês dedicado as mulheres no mundo todo. Confira:

1 – Carmosinda, a Eletros agradece sua participação e reforça todo merecido destaque a “Rainha da Refrigeração”, como você é conhecida. A princípio, nos fale um pouco de seu caminho e vida.

Eu nasci no extremo leste de São Paulo, uma região de baixa renda, no Itaim Paulista. Perdi meu pai aos 8 anos e fui criada junto aos meus irmãos somente por minha mãe.

Como toda boa mãe, ela sempre direcionou os filhos para o caminho dos estudos, contudo, como havia sido funcionária do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, nos falava sempre que as carreiras de futuro estavam ou no direito ou em áreas administrativas.

Na época, eu sequer sabia da existência de cursos técnicos, já que a divulgação onde morava era muito precária e as escolas eram muito longes. Não havia ali, como hoje, por exemplo, a Fatec Itaquera.

Logo, ao terminar o ensino médio, comecei a fazer cursos de capacitação em administração e rotinas contábeis, mas ainda naquela fase que todo jovem passa, cheguei a me inscrever num curso de Engenharia Química que não iniciei e trabalhei até de feirante na região.

Foi aí que consegui um trabalho na um trabalho como auxiliar administrativo em uma empresa chamada “Automação Analítica”, que na época, era uma representante comercial de algumas companhias internacionais que forneciam instrumentos analíticos e gestores de amostra para análises biológicas e testes de medicamentos. Foi quando eu conheci as câmaras climáticas.

Um dos meus papéis na empresa era recolher as informações e dados geradas pelos equipamentos e enviar para professores, pesquisadores e empresas de desenvolvimento no ramo biológico. Eu achava interessante aquelas informações referentes à bandeira, temperatura, umidade, tipo de sensor, tipo de porta, a capacidade das câmaras e esta mesma empresa, além de fornecer o equipamento, prestava manutenção, onde conheci o grupo dos técnicos.

Até então eu não sabia o que era um técnico, como falei, em que consistia o trabalho e um dos meninos da manutenção me trouxe um panfleto do Senai Oscar Rodrigues Alves e falou para mim, “olha, está aberta inscrição para curso técnico de refrigeração, vá até lá, conheça a escola. Tenho certeza de que você irá gostar, vai ser bom para você.”

Ao conhecer a escola, percebi que ali existiam várias disciplinas, como refrigeração aplicada na área automotiva, comercial, residencial e industrial. Me encantei pelos laboratórios de termodinâmica, desenho técnico, parte elétrica de comando. Percebi que existiam várias disciplinas que se divergem para que exista um técnico de refrigeração e climatização. Ele precisa ter conhecimento sobre a parte elétrica, de comando, eletrônica, hidráulica e até alvenaria, caso ele precise, por exemplo, perfurar uma parede.

Me apaixonei quando percebi todo esse universo e resolvi que iria aprender um pouquinho dele. Essa diversidade de conhecimento que o profissional da área de refrigeração precisa ter para poder desenvolver sua atividade foi o atrativo para que eu entrasse de vez na profissão. Dois anos depois estava formada.

2 – Quais foram seus desafios iniciais sendo mulher no ramo de refrigeração?

Existe uma dificuldade quando você faz um curso assim, principalmente nas aulas de laboratório, porque os homens não permitem que você desenvolva atividades manuais.

Aquele estereótipo de que mulheres com ferramentas vão se machucar ainda acontece e aconteceu muito comigo. E eu sou uma pessoa que tem um temperamento forte, pela forma como fui criada, tendo que aprender a se defender sozinha, logo queria ser tratada sempre de igual para igual e na juventude entrei em muitas brigas por isso.

Na época eu queria ser respeitada, mas eu não tinha a percepção de que eu estava entrando no ambiente deles e não eles no meu, então estava entrando na mente deles para mudar a forma de pensar e hoje eu tenho e entendimento de que tudo é uma questão de como você conduz a coisa.

Penso que é uma troca e que para ela acontecer, os dois lados têm que estar abertos, tanto a mulher como um homem, dispostos a se respeitar e crescer juntos com isso.

3 – E como foi o início de sua carreira e o papel da Midea Carrier nela?

Nas últimas semanas do curso, uma pessoa entrou em uma das aulas para divulgar que a Midea estava iniciando um programa de trainee para novos técnicos em colaboração com o Senai. Um amigo brincou que ele já iria se inscrever e que a vaga era dele, o que me motivou a também tentar e participar do processo seletivo, pois sabia que era uma aluna aplicada e capaz de conseguir aquela vaga.

O processo seletivo foi intenso e teve duração de quatro meses. Neste período, fiz provas técnicas, provas de conceitos gerais, entrevistas com psicólogo, gestores da área e de recursos humanos.

No momento da última entrevista, o coordenador me perguntou como eu achava que tinha ido em todo processo e eu respondi, “não quero que você veja como arrogância, mas se minha prova não for a primeira do processo, ela está pelo menos entre as três melhores”. Ele sorriu diante de minha confiança e eu me tornei a primeira mulher na área técnica de refrigeração no Brasil.

Iniciei meu trabalho na área de pós-venda e garantia e após isso tive a oportunidade de finalmente ir a campo com refrigeradores de líquido, climatização e operações de grande porte.

A Midea para mim foi determinante em crescimento profissional, aprendizado, foi meu primeiro emprego em uma multinacional e daí em diante nunca mais fiquei desempregada.

4 – E a chegada do sucesso? Como a “Rainha da Refrigeração surgiu? E o “Elas no AVAC-R”?

Após o período na Midea, recebi um convite para trabalhar junto a Emerson em seu braço de climatização de precisão chamado Liberty, que por sua vez foi vendido a um grupo chamado Vertiv, onde comecei a atender um data center que por coincidência já havia trabalhado na época da Midea.

Com essa boa relação e contato, a liderança desse data center chamado Equinix me fez uma proposta para liderar uma equipe técnica com exclusividade no projeto de expansão de negócio da marca no Brasil.

Nesse intervalo de Vertiv para Equinix e com essa nova função de gestão, conhecendo cada vez mais pessoas, surgiu a exposição nas redes que contribuiu para me tornar o que sou hoje.

Eu estava em vários grupos de refrigeração nas redes sociais e sempre via que existiam várias polêmicas quanto a métodos de trabalho, equipamentos e cotidiano da profissão. Foi em uma dessas polêmicas, quanto a utilização da tubulação de 3 metros determinada no catálogo de instalação do produto, que resolvi fazer um vídeo despretensioso explicando a necessidade da aplicação correta da tubulação, com uma breve ilustração técnica sobre o assunto.

O vídeo viralizou, porque até aquele momento, era inconcebível que houvesse mulheres atuando na área técnica operacional de refrigeração. A partir daí, comecei a mostrar mais do meu trabalho em meus canais e minha vida virou de cabeça para baixo.

Inúmeras pessoas conseguiram meus contatos e eu recebi nesse período mais de 8 mil mensagens de todo tipo. Elogios, críticas, preconceito de pessoas que duvidavam que eu realmente trabalhava no ramo e até pedidos de casamento!

E no meio disso tudo apareceram as mulheres, que diziam ver no meu dia a dia a coragem de também mostrar que trabalhavam em campo, que existiam mulheres presentes em atividades manuais, mas que evitavam se expor pelos mesmos motivos que eu sofri preconceito ao iniciar os vídeos.

Com toda essa exposição e viralização, me tornei conhecida e inserida no universo da refrigeração, recebendo carinhosamente esse apelido e, por consequência, me valendo dessa influência e da rede cada vez maior de mulheres com quem tinha contato, estabeleci o grupo “Elas no AVAC-R”, um canal de apoio, troca e contato entre as profissionais da área de refrigeração.

5 – Com esse reconhecimento, novos projetos surgiram. Como foi a criação do prêmio “Agora é que são elas”?

Com essa reunião de mulheres e a troca cada vez mais constante entre elas, percebi que esse movimento estava tomando força. Quando fui convidada para receber o prêmio Oswaldo Moreira, um importante reconhecimento na área de refrigeração, fui apresentada aos maiores líderes do ramo, com quem amadureci a ideia de mostrar para o mercado quem são as mulheres do AVAC-R, dar voz e representatividade a elas.

E assim surgiu a ideia de realizar um prêmio exclusivamente voltado a estas mulheres, denominado “agora é que são elas”, que hoje se encontra em sua segunda edição e que ajudou a fortalecer e sedimentar o caminho do movimento “Elas no AVAC-R”.

6 – E a chegada até a ONU?

Existe uma revista chamada “Mulheres da Refrigeração no Mundo” e nela vi uma matéria com um link de inscrição onde você deveria contar sua história dentro do AVAC-R e ela iria compor um livro, que seria publicado em parceria com a ONU.

Hoje penso que esse livro foi mal utilizado, porque na época as mulheres não tiveram acesso a essa pesquisa que o originou e entendo que ele foi menos divulgado quanto deveria. As outras três brasileiras que estão lá além de mim, entraram porque eu divulguei a ação e incentivei a participação delas.

Mas é claro que o feito é importante e o destaque a todas elas, merecido. Gostaria somente que essas iniciativas fossem mais difundidas e que mais mulheres da área técnica de execução tivessem mais destaque, já que temos muitas outras representantes de áreas administrativas, comerciais e falta mais da mulher no campo.

7 – O que toda essa experiência trouxe para a Carmosinda de hoje?

Penso que na imaturidade da juventude, todo mundo acaba cometendo alguns erros e um deles é não entender que as pessoas são diferentes e que nem todo mundo vai te aceitar como você é e isso é um problema delas, não um problema seu. Mas no começo você quer aprovação, respeito, se impor.

Hoje reconheço que fui dura demais com pessoas sem necessidade. Quando comecei a trabalhar em campo, passei a entender que as pessoas são diferentes, que as criações são diferentes, e então, às vezes, o fato de um homem pedir para levar minha mala em um trabalho, por exemplo, pode significar apenas respeito, porque ele foi ensinado assim.

É claro, também existem homens que não aceitam de forma nenhuma uma mulher ali, que tratam a mulher como um ser inferior, mas fui aprendendo a separar as coisas.

Eu fui aprendendo a separar esse homem que trata a mulher como um ser inferior do homem que só quer exercer uma boa educação. Com o tempo fui percebendo isso, fui entendendo e separando as pessoas.

Não perco tempo com quem não tem nada a agregar e dessa forma acabei descobrindo amigos incríveis e grandes profissionais.

7 – Quais são as principais barreiras para vermos mais mulheres em áreas de atuação técnica?

Eu penso que é um mix de diversos sentimentos. Quem trabalha com refrigeração está ali prestando um serviço, carregando escada, material, ferramental, muitas vezes está sujo, porque é um trabalho que você se suja bastante. É um trabalho realmente operacional.

As vezes as mulheres se sentem inseguras quanto a se expor nesse trabalho operacional, porque o homem, desde criança, muitas vezes com o pai, é incentivado a pegar em um martelo, bater, quebrar e ninguém toma da mão dele, ninguém diz que ele não deve mexer com aquilo, pois vai se machucar.

Uma mulher quando jovem é ensinada a ter interesses completamente diferentes e não é ensinado a elas atividades tidas como masculinas, de consertos, reparos e montagens. Muitas vezes elas são até incentivadas a se guardarem e se protegerem e não conhecer, explorar o mundo. Muitas delas levam isso para a vida adulta com um viés inconsciente e isso é um fator que gera muito receio quanto as atividades manuais e técnicas.

A vergonha, também, ainda é uma barreira, pois apesar de muitas mulheres terem vontade de executar estas atividades, muitas delas carregam dentro de si o pensamento de que não são capazes de realizar aquela atividade e o fato de terem que perguntar para aprender e muitas vezes serem tratas de maneira jocosa, as afasta e inibe.

Por isso, o “Elas no AVA-R” é fundamental no crescimento dessas mulheres, já que oferecemos um espaço livre de preconceitos onde todas podem aprender e perguntar sem se sentirem acuadas por homens mais experientes ou pedantes.

8 – E como podemos melhorar esse cenário?

Muitas empresas no nosso mercado adotaram ODS 5 da ONU, que fala sobre equidade de gênero e empoderamento feminino, além das pautas constantes de ESG, hoje presentes em todo o mundo. Então é possível ver uma preocupação maior não só com as mulheres, mas com o ser humano em si.

Claro que não são todas as lideranças, mas muitas empresas já despertaram para isso. Elas compreendem que, quando existe o cuidado com o lado humano do profissional, quando ele é valorizado, quando se tem pessoas emocionalmente saudáveis no ambiente de trabalho, o rendimento é melhor e o desgaste é menor.

Acredito que os estereótipos estão caindo e devem cair cada vez mais, já que o que faz um bom profissional é sua capacidade e conhecimento.

Contudo, a nossa participação, especificamente na área técnica, ainda é muito pequena e o incentivo empresarial e o surgimento de novas oportunidades é essencial.

Quando eu criei o “Elas no AVAC-R”, posteriormente o prêmio “Agora é que são elas” e a participação na ONU, tudo isso foi para buscar as mulheres neste mercado, saber quem eram elas e dar o devido destaque na profissão, para ajudar a fomentar as oportunidades e trazer novas meninas para esse universo.

Tudo isso passa por um tratamento delicado de fazer com que essas mulheres adquiram confiança e se sintam capazes em realizar esse trabalho. É um esforço conjunto entre nós mesmas, empresas, associações e entidades de classe.

9 – Nos conte um pouco sobre sua chegada a vida pública? Qual a importância do CRT-SP?

O Conselho Regional dos Técnicos Industriais do Estado de São Paulo existe há 3 anos. Antes de sua constituição, quem absorvia os técnicos era o CONFEA – Conselho Federal de Engenharia e Agronomia.

Existia há mais de 30 anos um movimento que acreditava que um conselho de nível superior não daria a devida atenção e dedicação para a categoria técnica e sempre existiu esse anseio de criar um conselho próprio, que foi finalmente homologado em 2018.

E eu fui escolhida pelos técnicos de refrigeração para representar a categoria de maneira específica dentro do conselho. Recebi esse convite muito por conta de toda essa trajetória que contei aqui, pela forma como me expresso e pela formo como defendo o exercício da profissão técnica de maneira geral.

Sempre existiu na categoria um sentimento de falta de reconhecimento e os técnicos de maneira geral são imprescindíveis para atividade industrial, por exemplo.

Além disso, existia a necessidade de melhor regulamentação das atividades técnicas e correta distribuição de responsabilidades nas ações desses profissionais, já que muitos deles atuam em ambientes de alta periculosidade. É preciso delimitar até onde vai a responsabilidade do técnico e julgá-lo de forma justa caso seja necessário fazê-lo.

Então meu papel é levantar essa bandeira. Mostrar aos técnicos a importância do exercício da profissão de forma legal, respeitando as legislações vigentes e para a população em geral e empresas, que devem buscar sempre um profissional habilitado, com todas as certificações que o capacitam para a atividade que irá fazer.

Muitas pessoas acham que um conselho de classe serve somente para a defesa do profissional daquela atividade, mas ele serve também para regulamentar e proteger quem se vale daquele serviço. E hoje faço parte dessa representação.

10 – Para terminarmos, qual sua mensagem para as mulheres e novas profissionais que virão?

Quando eu disse que ia trabalhar com “água gelada”, escutei que era impossível, que isso não era para mulher. E aprendi o seguinte: o impossível só é impossível até que alguém vá lá e faça. Eu fiz e sei da importância de ter aberto novas frentes para muitas outras mulheres no ramo de refrigeração. Minha mensagem vai ser sempre de incentivo para que estas mulheres tenham o devido reconhecimento e para que novas técnicas surjam em todas as áreas profissionais.