ESPECIAL - SAÚDE E SEGURANÇA DO TRABALHO
Tema recorrente nas empresas no período que vai da última semana de abril à primeira semana de maio, Saúde e Segurança do Trabalho ganha destaque nesta edição do Conectados, que apresenta duas entrevistas imperdíveis sobre a evolução legal e regulatória neste campo. O Brasil tem evoluído bastante na adoção de instrumentos de gestão nesta área e a indústria tem tido um papel relevante neste processo. Para tratar do assunto, entrevistamos Katyana Aragão, gerente-executiva de Saúde e Segurança na Indústria no SESI e a advogada Olívia Pasqualetto, professora de direito do trabalho da Escola de Direito da FGV, em São Paulo.
Katyana Aragão, Gerente-executiva de Saúde
e Segurança na Indústria do SESI
Conectados – Qual a importância do papel da gestão no que se refere à prevenção de acidentes e promoção de um ambiente seguro de trabalho?
Katyana – A prevenção e a promoção da saúde do trabalhador são uma agenda estratégica da indústria brasileira. Esse é um trabalho permanente de cuidado e melhora do ambiente do trabalho, que envolve programas de promoção da saúde e gestão de riscos e prevenção de acidentes. Com essas iniciativas, há avanços evidentes em redução de absenteísmo, de acidentes de trabalhos, de casos de doenças ocupacionais. E as empreses têm percebido cada vez mais que investir em saúde e segurança do trabalho dá retorno, não só pelo lado do bem-estar do trabalhador. É uma equação com resultados positivos para a produtividade do trabalho e que reduz custos na operação.
Conectados – O que um plano eficiente de gestão precisa priorizar? Quais os pontos em que a indústria ainda precisa focar mais esforços?
Katyana – O primeiro passo é o mapeamento dos riscos ocupacionais no ambiente de trabalho. A revisão da Norma Regulamentadora n.01 (NR-01) foi um importante avanço na harmonização e modernização das regras de saúde e segurança no trabalho. A norma traz as diretrizes gerais para SST e introduziu as orientações e exigências para o Gerenciamento de Riscos Ocupacionais e o Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR). A partir desse processo, faz-se um inventário de riscos e elabora-se um plano de ação, que será utilizado na prevenção de acidentes e de doenças ocupacionais. O principal ponto de avanço é entre as empresas de menor porte, que naturalmente poderão ter dificuldades técnicas e de recursos para entrarem em conformidade. Por isso, o SESI lançou a ferramenta on-line “Facilita PGR”, que permite que elaborem o seu PGR conforme seu ramo de atividade e os riscos existentes.
Conectados – Conscientização dos colaboradores é um fator importante a ser considerado neste plano?
Katyana – O envolvimento dos trabalhadores é um elo fundamental na promoção da saúde e na gestão de riscos nas empresas. O SESI tem percebido que há um crescente interesse das empresas em criar ou melhorar os seus programas de promoção da saúde. Em 2021, realizamos uma pesquisa com 200 gestores de indústrias e 81% disseram que a melhoria contínua dessas iniciativas é uma tendência e que veem suas empresas como parte dela. Em geral, as ações mais comuns são campanhas de vacinação, de combate à hipertensão, de estímulo à atividade física, de combate ao diabetes e de orientação nutricional. Há também tendência de fortalecimento da utilização da gestão da informação para promover investimentos mais assertivos em iniciativas de apoio à saúde do trabalhador.
Conectados – Como envolver os colaboradores e conectá-los à ideia de que trabalhar em segurança é fundamental?
Katyana – O atendimento às regras de SST é uma obrigação igualmente das empresas e dos trabalhadores. Claro que é responsabilidade das empresas assegurar um ambiente seguro para seus empregados, mas esse objetivo é alcançado por meio de treinamentos, de sinalização adequada, da atualização periódica dos requisitos e obrigações de SST em acordo com o grau de risco de cada ambiente. Em suma, é um processo contínuo de engajamento.
Conectados – A diferença de porte, tamanho, número de colaboradores, a especificidade do maquinário e outros pontos que diferenciam umas companhias das outras devem ser considerados no plano de gestão de acidentes? Ou, independente desses critérios, esse plano é uniforme a todo o ambiente de trabalho, independentemente do tamanho da companhia?
Katyana – A NR-01 estabelece que o Gerenciamento de Riscos Ocupacionais e o Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR) devem ser realizados de acordo com o grau de risco de cada empresa, que varia de 1 a 4. Esse grau varia conforme o ramo de atividade e deve levar em conta o mapeamento de possíveis riscos químicos, físicos, biológicos, ergonômicos e de acidentes. Além disso, há normas regulamentadoras específicas que, dependendo do grau de risco e do ramo de atividade, devem ser observadas, como regras para máquinas e equipamentos (NR-12), ergonomia (NR-17), entre outras.
Conectados – As empresas que passaram a se preocupar mais com planos de compliance ou aprimoramento de seu ESG levam vantagem quando se refere à gestão de ambientes seguros de trabalho? No que essas ferramentas podem colaborar?
Katyana – Transparência, regras claras e diálogo são fundamentais para um bom ambiente de trabalho e para aumento da produtividade. O compliance trabalhista é um programa adotado pelas empresas com regras de condutas e políticas que buscam mitigar riscos e fortalecer o respeito às leis, regulamentos, acordos e convenções coletivas de trabalho.
Olívia Pasqualeto, Professora de Direito do Trabalho e
Pesquisadora Sênior no Centro de Pesquisa e Inovação na FGV-SP
Conectados – Dados mais recentes do relatório do Ministério Público do Trabalho e da Organização Internacional do Trabalho entre os países do G20 apontam que o Brasil alcançou a taxa de 6 óbitos a cada 100 mil trabalhadores entre 2002 e 2021, ficando atrás apenas do México, com 8 óbitos a cada 100 mil mortes no mesmo período. A que fatores a Sra. atribui esse mau desempenho? *
Olívia: Realmente, o Brasil não está bem no que se refere à segurança de trabalho e é um dado do qual não podemos nos orgulhar muito. É muito difícil indicar uma causa ou um principal fator. É um conjunto de fatores que influencia esse resultado.
O primeiro é uma falta de cultura de prevenção geral, seja por parte da empresa, seja por parte dos colaboradores. Existe uma falta de consciência de que estratégias preventivas são importantes. O velho ditado “é melhor prevenir que remediar” se aplica.
Outro fator que também colabora é a falta qualificação de mão-de-obra, principalmente dos colaboradores que operam diretamente o maquinário. E, por fim, um terceiro fator é falta de um sistema de fiscalização que, além de multar, também possa orientar como fazer para operar as máquinas, cumprir a legislação, exaltar as boas práticas com o objetivo de melhorar esse desempenho.
Conectados – Não há nada no horizonte que possa melhorar este cenário, especialmente no cenário no qual a fiscalização passe de “arrecadatória” para uma fiscalização “consultora”?
Olívia: Eu diria que há uma luz no fim do túnel, pela iniciativa de diferentes atores. Aumentou a preocupação das empresas em relação a programas de compliance e estratégias de ESG (Environmental, Social and Governance). Apesar de ser iniciativas voluntárias das empresas marcadas pela autogestão, observamos que quando as empresas adotam esses programas, a segurança e a saúde no trabalho também estão contempladas. Acidentes de trabalho não é bom para ninguém.
Conectados – Como a legislação trabalhista regulamenta acidentes de trabalho na indústria?
Olívia – Eu diria que o Brasil tem uma legislação sobre saúde e segurança de trabalho que é um conjunto bem complexo e que está inserido em diversos textos legais, seja na Constituição, que prevê preocupações sobre segurança no trabalho e direitos sociais, na CLT, e nas normas que tratam de detalhes mais específicos que afetam a indústria. É um corpo legislativo importante.
Conectados – O direito do trabalho no Brasil sofreu diversas alterações nos últimos anos, inclusive com uma modificação substancial na CLT. Essas mudanças impactaram a gestão e a regulamentação dos acidentes de trabalho?
Olívia – Sobre a legislação, temos que analisar com cuidado, porque tivemos muitas mudanças. Porém, essas mudanças não contribuíram para melhorar o quadro em relação à saúde e segurança no trabalho.
Se a gente olha para este tema na CLT, ele sofreu pouquíssimas ou quase nenhuma alteração recentemente. Essas alterações remontam basicamente à década de 1970. Haveria mais espaço para atualizar as normas referentes à segurança do trabalho, mas não foi feito.
Essa atualização da década de 70 não foi em vão. Foi nesse momento que surgiram as NR (normas regulamentadoras).
Conectados: O que são as NR (Normas Regulamentadoras)? Como elas atuam na regulação do direito do trabalho?
Olívia – Deve-se observar que as NR são normas de cumprimento obrigatório, mas não são leis. Elas são elaboradas no âmbito do poder Executivo e do Ministério do Trabalho e Previdência; e versam sobre detalhes muito específicos, como o espaço entre degraus, especificidades sobre funcionamento de máquinas, por exemplo.
O projeto original previa que as NR teriam atualização de 2 em 2 anos, porém o contexto de mudanças econômicas e políticas não permitiram essa atualização. Nos bastidores, ninguém imaginaria o quanto de trabalho teria para atualizar tantos detalhes.
Somente a partir de 2019 é que ocorreram várias atualizações de NR, entrando em vigor em 2020 e 2021, mas ainda assim muitas coisas permaneceram. E esse olhar sobre a saúde e segurança no trabalho deveria estar mais na pauta. Os acidentes continuam ocorrendo, a tecnologia avançou e, portanto, o governo deveria estar mais atento.
Uma coisa muito positiva no processo de formulação destas normas, é que temos uma estrutura muito interessante chamada Comissão Tripartite Paritária Permanente. Nesse processo de elaboração, participam representantes do governo, de empregadores e de trabalhadores. E quem melhor que a indústria para contribuir para essas novas regras?
Conectados – As mudanças em relação à saúde do trabalho poderiam ter avançado mais?
Olívia – Eu diria que sim. Trago um exemplo que não é frequente no cenário da indústria, mas está mais presente no mundo que é o caso das doenças mentais relacionadas ao trabalho. Ao olhar para a nossa legislação, seja CLT ou NR, a arrasadora maioria das nossas normas não se preocupa com a saúde mental. A maioria das regras ainda é voltada para a saúde física. Isso ilustra o quanto é preciso se avançar sobre este tema.
Conectados – Essa preocupação com a saúde mental no ambiente do trabalho aumentou com a pandemia ou já estava presente antes?
Olívia – Essa mudança já vem de alguns anos. A resolução 155 da OIT, de 1981, já incorporou saúde mental ao conceito de saúde. E essa preocupação foi reforçada no centenário da OIT, em 2019. Mal eles sabiam que teríamos uma pandemia, o que exacerbou demais a questão de saúde mental. Mas, falta proteção na nossa legislação.
Conectados – Há projetos de lei nesse sentido, de se criar novas normas e inserir na CLT?
Olívia – Há projetos de lei que tentam se conectar a esse tema. Um exemplo é o Anexo 17, que trata de telemarketing ou teleatendimento, e tem algumas preocupações que se aproximam desse cuidado. Esse anexo fala da importância da socialização com colegas de trabalho após uma ligação difícil ou com reações violentas.
Para além da NR 17, existe um movimento em relação a Projetos de Leis, e temos muita coisa. O que é difícil é prever o andamento desses projetos.
Conectados – Que medidas as indústrias podem adotar para reduzir os acidentes? Os dados do G20 afetam o Brasil inteiro ou as indústrias maiores e de ponta sofrem menos? E também falar do papel dos trabalhadores na prevenção e o papel da Cipa (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes)?
Olívia – A gente fala sobre indústrias, mas tem de tudo. É um cenário misturado e variado. As empresas com tecnologia mais avançada e máquinas novas, que têm dispositivos mais avançados. Sim, a modernização das máquinas contribui para reduzir os acidentes.
Porém, outra ação que ajuda é reforçar o treinamento de colaboradores e informações são fundamentais. Parecia trivial, mas é fundamental o aspecto de atualização constante de ferramentas e dispositivos de segurança. E comunicar isso aos funcionários.
As empresas que têm programas de ESG têm se atentado mais a esses cuidados com segurança.
Por outro lado, não são somente as empresas que têm obrigações. O meio ambiente do trabalho é afetado por todos. Os empregados também têm obrigações de participar dos treinamentos, colaborar, participar, perguntar e usar corretamente o equipamento. Essa colaboração é muito importante.
Nesse sentido de colaboração, a Cipa, apesar de andar meio desacreditada, tem um papel importante na comunicação. É uma comissão formada por empregadores e empregados, e poderia exercer um papel mais decisivo no que se refere a verificar o que está acontecendo, observar se os colaboradores estão cumprindo as obrigações das empresas, promover semanas de informação. Enfim, promover um maior diálogo entre empregadores e empregados.
*Há controvérsias em relação aos dados que baseiam esta comparação. No Brasil, os acidentes de trabalho também envolvem aqueles que ocorrem no percurso entre a casa e o local de trabalho. Outros países contabilizam apenas os acidentes de trabalho que ocorrem exclusivamente nos locais de trabalho.