Escassez de insumos desorganiza o mercado de bens de consumo

09/04 – Fonte: Jornal Valor Econômico – Pág.: B1

 

Por Adriana Mattos, Raquel Brandão e Daniela Braun – De São Paulo

 

O desequilíbrio entre oferta e demanda, já sentido pela indústria e pelo varejo ao longo de 2020, permanece neste ano, com um fator adicional: a retomada, mesmo gradual, do consumo no exterior. O avanço da vacinação, e consequente recuperação econômica, em alguns países, como China e Estados Unidos, eleva o risco de novos gargalos, com impacto no mercado brasileiro.

 

O mercado de bens de consumo tenta se equilibrar em um cenário delicado, que pode impor um “teto” à retomada das vendas, quando a pandemia estiver controlada. Varejistas e fabricantes, em especial os de menor porte, têm receio de aumentar estoques e a demanda não aparecer. A falta de insumos, embora exista, não é tão aguda como no ano passado pois as vendas estão fracas. Mas os preços dos insumos continuam subindo.

 

A escassez global de componentes para eletroeletrônicos, incluindo microprocessadores e telas de LCD, deve se estender até, pelo menos, o primeiro trimestre de 2022. A previsão vai além do esperado pelos fabricantes no Brasil, que contavam com a regularização da cadeia de suprimentos no quarto trimestre deste ano.

 

Segmentos como eletrônicos, eletrodomésticos, moda, calçados, alimentos e bebidas enfrentam períodos de instabilidade na produção – momentos de “picos e vales” na cadeia, que acabam afetando o planejamento do varejo.

 

“A falta de mercadorias hoje só não é maior porque a venda no comércio perdeu força com a segunda onda da pandemia”, diz Felipe Mendes, diretor da consultoria GfK Brasil. Mendes lembra que o aumento no consumo em outros países acelera a busca por matérias-primas, como componentes eletrônicos, fios têxteis e embalagens, o que obriga fábricas e varejistas a ajustarem os seus pedidos.

 

O consumo doméstico da China mostra força, puxando para cima o preço de insumos, como o aço – a economia chinesa deve crescer 8,4% neste ano, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI).

 

“O que ajuda, neste momento, a contrabalancear essa pressão na cadeia é a desaceleração da demanda no Brasil, que impede a formação de um descompasso maior”, afirma Mendes.

 

O receio é que na segunda metade do ano – com a hipótese de uma vacinação mais avançada – haja um aumento de demanda, levando a uma nova falta de mercadorias. “O risco é que após junho ou julho, com uma demanda maior, e de forma mais generalizada, a falta de insumos fique mais crítica”, disse ontem o diretor de uma fabricante de celulares. “A boa notícia é que uma possível retomada no setor de serviços na segunda metade do ano pode deslocar o consumo para esse segmento, o que aliviaria a pressão na cadeia de duráveis”, diz.

 

Para Dvair Lacerda, diretor comercial do grupo goiano Fujioka , dono da rede de eletrônicos Fujioka, com 54 lojas, há receio da indústria de duráveis em elevar muito o estoque de matéria-prima, como chips e telas, e a demanda no ano acabar frustrando as expectativas. “O nível de incerteza é grande, porque há uma alta nos preços. Houve um salto de 30% a 40% neste ano, por causa do insumo dolarizado mais caro, e não se sabe se o consumidor vai absorver essa alta. Por isso, o fabricante também anda mais conservador no planejamento, e o varejo acaba se adaptando a isso”, disse.

 

Em entrevista ao Valor, em março, Helio Rotenberg, presidente da Positivo Tecnologia, que fabrica computadores pessoais e corporativos, disse que a disputa do mercado pelas telas LCD elevou o preço por unidade de US$ 25 para US$ 52, no ano passado. Os fabricantes repassaram o aumento ao consumidor. Em 2020, os preços médios de smartphones e de computadores vendidos no país tiveram altas de 24% e 26,3%, respectivamente, segundo a consultoria IDC Brasil.

 

A Fujioka, neste ano, não sentiu falta tão relevante de produtos porque reforçou estoques, mas há efeitos pontuais. “No caso dos smartphones, não conseguimos receber tudo que pedimos por conta desses desequilíbrios, mas está melhor do que o que vimos em 2020”, diz. “Em notebooks e tablets há uma ruptura maior do que no ano passado, com falta de certas linhas. Já em televisores, com a alta do preço, o temor é comprar muito e não vender depois”.

 

O executivo ainda disse que a indústria não tem relatado uma falta tão drástica de insumos como após o início da pandemia, em 2020, mas ainda há gargalos, por conta da atual demanda global.

 

Tradicional rede de varejo eletroeletrônico do Centro-Oeste, a Novo Mundo diz que o mercado ainda tem enfrentado períodos de instabilidade na produção. “Temos visto muitos picos e vales desde 2020, com desequilíbrios que vão afetando principalmente as redes menores, que têm limitações de caixa”, diz José Guimarães, presidente da rede, com 150 lojas.

 

Segundo ele, no ano passado, após o início da pandemia e o fechamento das fábricas de eletrônicos e eletrodomésticos, houve atrasos na produção de TVs e eletrodomésticos, com falta de certas mercadorias em 2020. Houve retomada da operação do setor de forma gradual, reduzindo o descompasso entre produção e venda. O problema é que após esse pico, houve desaceleração na demanda no fim do ano, após dezembro, e as fábricas passaram a ajustar a produção a essa demanda menor.

 

Guimarães vê risco de novas instabilidades neste ano: “O cenário tem mudado rapidamente e as empresas vão se adaptando a isso, mas caso a vacinação continue lenta, poderemos ter uma desaceleração maior. E, com isso, se corre o risco de termos um outro descompasso entre produção e venda”.

 

Em fevereiro, a Eletros, associação nacional do setor eletroeletrônico, estimou perda de 30% a 40% na produção em Manaus (AM) por conta das medidas de restrição de circulação na região. Houve redução na atividade nas fábricas, que só não levou a uma ruptura maior porque em fevereiro e março a demanda de bens duráveis já havia caído em relação a 2020.

 

No setor de moda, depois que a crise começou, em março de 2020, muitas varejistas, principalmente de menor porte, cancelaram pedidos, diz a Pernambucanas, que manteve suas encomendas. Na primeira semana de março, quando os governos estaduais foram aumentando as restrições de circulação, a Hering informou que o fluxo de matérias-primas já estava normalizado, mas havia um gargalo na etapa de confecção. “Muitas operações fecharam, pessoas mudaram de ramo. São pequenos e médios negócios terceirizados, empresas que cumprem essa etapa na nossa cadeia”, diz Thiago Hering, diretor executivo de negócios. “Ainda esperamos dificuldades nessa cadeia em março, abril e talvez em maio, e um cenário de maior estabilização, reduzindo esse desequilíbrio, depois disso”, disse ele, antes do último anúncio de maiores restrições, em março, pelos governos estaduais.

 

O fechamento do comércio em diversas cidades se reflete num nível de demanda muito baixo para a indústria de calçados. A produção em fevereiro cresceu somente 1%, ante janeiro, e caiu 4% em relação a igual mês de 2020. Os dados de março, ainda não consolidados, podem apresentar um novo desempenho negativo. “Hoje, 90% das indústrias não têm o que produzir na segunda quinzena de abril. Existem poucos dias de pedidos”, diz Haroldo Ferreira, presidente da associação do setor (Abicalçados). Os fabricantes agora não sofrem com indisponibilidade de insumos justamente porque estão produzindo menos.

 

“Mas o custo disparou, já que muita matéria-prima tem preço dolarizado”, diz. Nem todas as empresas podem estocar a produção do ano e vender a coleção no ano seguinte, pois muitos são itens de moda e produzidos para períodos determinados. “Hoje nossa principal batalha é para que seja reeditada alguma medida de proteção ao emprego, para evitar demissões”.